Ética e Liderança Cristã: Maquiavel, moral, ética e política no Brasil

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Maquiavel, moral, ética e política no Brasil

A relação dos políticos com a palavra empenhada e as equipes de trabalho

Os dois capítulos “De que modo os Príncipes devem manter a fé da palavra dada” e “Dos Secretários que os Príncipes têm junto de si”, ora comentados fazem parte do livro “O Príncipe”, escrito por Niccolò Machiavelli (mais conhecido fora da Itália como Maquiavel)- na verdade um Manual prático de “Governança”, dedicado ao Príncipe Lorenzo di Médici.
Tem certa importância ressaltar que o livro foi escrito durante o exílio de Maquiavel, e que ele teve por base os problemas vividos pela cidade de Florença e por pano de fundo a ebulição política, social, religiosa e cultural que então tomava conta da dividida península italiana, em meio a guerras, complôs e sedições intermináveis.
Numa época em que soçobravam todos os valores e os paradigmas da Idade Média e em que os homens fortes do momento confiam muito mais em sua boa estrela, em sua força, sagacidade e astúcia – e na Fortuna (contingência própria das coisas políticas) – Maquiavel resume, no “Príncipe”, o que deve ser a arte da política e de governar bem.
Mas Maquiavel – já na época dele – tem consciência de que ele choca: só ele ousa dizer sem rodeios e de forma extremamente crua coisas que todo o mundo sabe, mas receia comentar a não ser à socapa. Uma certa ironia é sempre perceptível no seu estilo e retrata, antes, um desencanto com o homem do que propriamente uma veia cínica. Não esqueçamos que Maquiavel foi exilado, torturado e várias vezes injustiçado politicamente, o que explica muitas de suas sentenças.
À semelhança dos renascentistas preocupados em fundar uma nova ciência física, Maquiavel rompe com o pensamento medieval e passa a usar o método da investigação empírica no campo da Política.
O mais importante: Maquiavel quer separar os interesses do Estado dos dogmas e dos interesses da religião em primeiro lugar. Ele assevera que ser frio e calculista, não medindo esforços para obter e manter o Poder, é parte das Virtú (“virtudes”) que todo homem político deve ter, ao lado da coragem física, da força de vontade e de caráter, da habilidade, da astúcia, da versatilidade e da inflexibilidade no trato dos adversários.
Neste sentido, Maquiavel delineia o perfil ideal de um homem político desprovido de escrúpulos – um perfil que tem muito a ver com os condottieri da Renascença italiana – em franca oposição ao padrão tradicional da ética cristã.
Num tempo de conflitos entre o poder da Igreja e o Estado, Maquiavel sustenta que a razão de Estado se sobrepõe a tudo e a todos, inclusive ao próprio arcabouço legal que, teoricamente, o próprio Estado deveria manter e defender. Aqui, Maquiavel advoga uma racionalidade eminentemente instrumental, sem importar-se com os valores éticos tradicionais, sejam eles sagrados ou profanos.
Mas isto não quer dizer que, para Maquiavel, a ética seja indiferente. Ao contrário, ele vai reconceituá-la e ressignificá-la: para ele, a busca do êxito (e o exercício da coisa pública) faz com que determinados valores sejam éticos, na medida em que eles tendem ao fim desejado. Neste sentido, a Política é a esfera do Poder por excelência: ela tem a prioridade sobre todas as demais esferas (pública, privada, religiosa, profana), pois ela é, por excelência, a atividade constitutiva da existência coletiva… É neste novo (e descomunal!) sentido da palavra que, para Maquiavel, a arte da Política e o uso do Poder que lhe é correlato são éticos, uma vez que eles estão a serviço do bem público. Os meios empregados são, portanto, correspondentes e consentâneos aos fins que os comandam.
Os dois capítulos em foco demonstram este princípio de forma cabal: para Maquiavel, a política se revela como esfera autônoma, não mais subordinada à religião e tampouco à filosofia, sua irmã gêmea… É exatamente por isso que Maquiavel não tem o que fazer com os princípios e as doutrinas do Cristianismo e da filosofia na definição dos princípios instrumentais da arte da política: a ética dele é ética apenas e enquanto se coloca a serviço dos interesses do Estado, os quais interesses, supostamente, seriam coincidentes com o bem público. É deste novo campo de estudo (a Política) – independente da religião e da filosofia (entenda-se, mais precisamente, da filosofia escolástica) – que Maquiavel vai procurar investigar as regras e a dinâmica subjacentes. Regras e dinâmica que, diga-se claramente, nada mais devem a considerações privadas e morais pautadas pelo Cristianismo.
Temos, então, a Política como algo além do Bem e do Mal, a serviço de alvos que identificam, acriticamente, os interesses do Estado com o bem público (o qual bem público pode ser – como de fato costuma ser – algo muito diferente daquilo que a Bíblia conceitua como Bem). Em última instância, o Poder – e não mais o direito – legitima qualquer coisa.
A noção que Maquiavel tem do ser humano nos ajuda a entender ainda melhor suas concepções políticas. O homem é, fundamentalmente, alguém dominado por apetites e interesses. Nem essencialmente boa, nem fundamentalmente má (embora o homem costume praticar o mal em medida muito maior do que o bem), a natureza humana é sempre a mesma: ela não muda e não é passível de aperfeiçoamentos. É vã a religião – como o é a filosofia – no seu intuito de levar o homem a um crescimento moral e espiritual. Antes, o extremo pragmatismo de Maquiavel o leva a usar tudo o que é humano – e, principalmente, aquilo que, muitas vezes, é tachado de mau – a serviço da estruturação do Estado e da consecução do bem público. Na medida em que tudo se corrompe e se degenera – e isto vale, também, para os princípios e as normas que norteiam a conduta humana – deve-se utilizar os apetites e as virtú humanas (que nada têm a ver com as virtudes cristãs!) como alavancas para manter a ordem e fazer o país prosperar.
Para Maquiavel, a violência inerente ao homem há de ser canalizada e utilizada para o bem coletivo – e não tolamente negada. Além de pragmática, é também pessimista a visão de Maquiavel acerca do ser humano. Tudo – ou quase tudo – se resume a uma questão de cálculo de custo/benefício e, nisto, a nossa natureza animal saberá distinguir, em obediência ao princípio da sobrevivência, o que lhe é mais conveniente em cada momento. Sem dúvida, muito dessa concepção se deve tanto ao clima conturbado da época, como também às próprias tribulações e injustiças sofridas por Maquiavel ao longo de toda a vida. A própria falta de sentido que Maquiavel enxerga no meio de todo o rebuliço de sua época o leva a procurar princípios estruturadores de ordem na figura do Estado, da política e do Príncipe que, momentaneamente, encarna alguns destes princípios.
Por isso, manter a palavra dada é algo, para o Príncipe, a ser avaliado a cada instante: em muitos momentos, revogar a palavra dada será a expressão máxima da virtú, pois patenteará que a defesa do bem público e do interesse do Estado exigem habilidade, astúcia e colocação acima de manifestações emocionais e de fraquezas humanas (sendo uma dessas fraquezas o fato de acreditar, acriticamente, na palavra alheia. Se isso não for sinal de imbecilidade, é, no mínimo, um indício deplorável de ingenuidade, além de denotar profundo desconhecimento da natureza humana: algo imperdoável para um governante que queira continuar governando!).
Da mesma forma, com relação aos secretários e ministros de que o Príncipe houver por bem cercar-se, o senso de observação e de oportunidade do Príncipe deverá levá-lo a escolher pessoas inteligentes que antes pensem nele do que em si mesmas…
… O que é quase que impossível, uma vez que é a ambição pessoal e a satisfação de interesses particulares que movem a imensa maioria da humanidade – ainda quando tal ambição e tais interesses venham habilmente disfarçados e mascarados de comprometimento com a coisa pública, o bem público, o interesse do Estado e o serviço abnegado ao Príncipe… Conseqüentemente, deverá o Príncipe comprar a lealdade de seus conselheiros e ministros, desde que compense fazê-lo à vista das habilidades deles: conhecendo o ponto fraco de cada um de seus secretários, o Príncipe amarrará cada qual às suas próprias vaidades, seja com honrarias, cargos, embaixadas, riquezas e quejandos – entretanto, obrigando cada um deles para com a pessoa do Príncipe, de tal forma que o estreito laço de dependência de muitos para com este seja não apenas mantido, mas sempre fortalecido, devendo ficar claro que o Príncipe, por dispensar proteção e favores a seus conselheiros, é dono da vida deles.
Portanto, de fonte de benesses para com eles, o Príncipe também pode transformar-se repentinamente em fonte de desgraças, se ele assim quiser. Sabedores disso, os secretários terão prudência no agir e aversão a mudanças que possam alterar sua fortuna. Ligados ao Príncipe de tal sorte pelo jogo de compensação de interesses, eles sempre serão levados a desejar o sucesso dele (para também serem aclamados e recolherem um pouco que seja da fama dele) e nunca a ruína. Tal princípio, se ele não elimina de tudo a traição, reduz entretanto o risco que ela representa à estabilidade de um Governo.
Assim, transformará o Príncipe aquilo que, no início, não passava de fraquezas ou vaidades de seus secretários, em preciosas virtú colocadas a serviço da arte de governar. A confiança que se estabelece então entre o Príncipe e seus secretários (e entre os próprios secretários) vem deste sábio equilíbrio e da justa dosagem entre as ambições de cada um (sendo as ambições dos secretários a um só tempo reconhecidas e alimentadas na medida certa e refreadas naquilo que elas possam ter de ameaçadoras para o Príncipe).
E hoje?
O panorama da política no Brasil reflete muitos dos postulados de Maquiavel, embora se saiba que a maioria dos nossos governantes nunca o tenham lido. É assim que se explica a visão de ser humano que hoje perpassa todas as esferas da vida pública: uma visão utilitarista, pragmática e fundamentada no cálculo frio e racional da relação custos/benefícios. É, claramente, uma visão antibíblica e pessimista, a qual faz do ser humano decaído e pecaminoso a medida de todo e qualquer princípio de ação política.
O que é interessante – depois de tudo o que acaba de ser dito neste artigo sobre os fundamentos e os pressupostos filosóficos e irreligiosos da visão de Maquiavel – é que legiões de políticos que se dizem evangélicos seguem tal visão e aplicam zelosamente os seus princípios. Em vez de fazer do Evangelho o anúncio das Boas-Novas e da promessa da emancipação global do ser humano – nas esferas espiritual, moral, afetiva, racional, relacional, psicológica, física e material – a grande massa de políticos evangélicos reza por outra cartilha: a do reforço da alienação global, em nome de um interesse público e de uma razão de Estado que mal escondem a podridão dos valores que são tomados por referenciais. Valores esses que são antibíblicos e falham inteiramente em resgatar a perspectiva ética das Sagradas Escrituras. Por isso também, o discurso alienante e despolitizador da Ética na Política, próprio das forças conservadoras, não passa de outro embuste: o de fazer com que o povo acredite que possa existir, em política, outra ética verdadeira que não a ética bíblica nas relações entre os seres humanos.
Com efeito e afinal de contas, se o pecado é, antes de mais nada, de cunho relacional (o assim-chamado Pecado Original, de fato, representa a quebra unilateral, pelo homem, do vínculo relacional de amor que a Santa Trindade mantinha com ele, como expressão – estendido ao outro – do padrão relacional ideal que as três Pessoas divinas mantêm eternamente entre si), cabe aos políticos evangélicos zelar, então, pela restauração de relacionamentos bíblicos na esfera pública – com base na ética do Reino de Deus e não na ética de Maquiavel. Naturalmente, parte-se da premissa de que tais políticos evangélicos sejam regenerados…
Uma observação importante: não se nega, aqui, que o político cristão deva ser prudente e ter o senso das oportunidades (sem ser oportunista). Hábil, sim, e profundo conhecedor da natureza humana (nisto o poderão ajudar tanto a Bíblia como a leitura das obras de Maquiavel): nunca ingênuo, o político cristão tem de reconhecer a acuidade e a profunda honestidade intelectual de muitas observações de Maquiavel (honestidade e conhecimento do ser humano que são preferíveis ao discurso falsamente moralizador e abertamente hipócrita que costumamos ouvir por aí!). Isto, entretanto, deveria ser apenas um ponto de partida, e não de chegada, como o tem sido
De fato, o político evangélico, ao mesmo tempo em que deve proclamar/anunciar o Evangelho, precisa denunciar as estruturas pecaminosas na sociedade e no ser humano. O político evangélico deve ser o arauto da contracultura do Reino de Deus, o que o leva, mais cedo ou mais tarde, a confrontar radicalmente as estruturas pecaminosas do mundo. Neste sentido, ele deveria desempenhar, na sociedade hodierna, o mesmo papel e ofício do Profeta do Antigo Testamento (o que o tornaria profundamente antipático à maioria de seus contemporâneos, num primeiro momento…). Infelizmente, longe de ser o proclamador dos valores eternos e supraculturais do Evangelho (valores que se destinam a transformar todas as culturas humanas existentes), o político evangélico, pelo menos no Brasil, tem se acomodado a uma estrutura de poder que espelha pressupostos ontológicos, filosóficos e religiosos claramente antibíblicos.

O envolvimento dos políticos ora com o bem, ora com o mal

É preciso que ele [o Príncipe] tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o determinem e, como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário.
Maquiavel é o fundador da ciência política. É como pensador político e como cientista, portanto, que ela equaciona os dados políticos.
O que Maquiavel quer dizer, na passagem que ora analisamos, é que o Príncipe deve estar atento às circunstâncias políticas para poder aproveitá-las em benefício de seu Governo. Contrariamente ao que se pensa comumente, Maquiavel não advoga algum tipo de volubilidade, mas sim daquilo que chamaríamos hoje, no linguajar de nossa época, de proatividade. O Príncipe deve estar atento aos sinais dos tempos e ter a sabedoria de antecipar-se aos desdobramentos dos acontecimentos, sem se deixar prender e escravizar por eles.
Conforme já foi dito no parágrafo anterior, o senso de ética de Maquiavel está acima do bem e do mal. Sustentamos, aliás, que a ética dele (devidamente ressignificada) se volta para o atendimento ao que ele define como sendo o bem público e o interesse de Estado (é a mesma ética que a República Popular da China, por exemplo, aplica no controle da natalidade), razão pela qual tal ética desvincula-se de qualquer valor eterno, sobrenatural ou transcendental, seja ele filosófico ou religioso e, particularmente, dos imperativos da moral cristã.
De mais a mais, já foi dito, anteriormente, que a ética de Maquiavel radica numa concepção fundamentalmente amoral do ser humano (não imoral, mas, sim, amoral), o que faz com que as categorias filosóficas e religiosas de bem e de mal deixem de ser referenciais absolutos no sistema dele. Na melhor das hipóteses, tais conceitos serão utilizados como instrumentos de governo, tendentes a fins políticos (de manutenção de poder, estabilidade, bem público, etc) e perderão a sua conotação tradicional.
Por isso, embora seja conveniente, de acordo com os preconceitos e os (tolos…) condicionamentos da sociedade, que o Príncipe aparente siga os princípios do bem, isto absolutamente não o deve prender e escravizar a tais “princípios”. O fim a ser alcançado (a estabilidade da ordem social, o atendimento ao bem público e ao interesse do Estado, a vontade do Príncipe) é que vai ditar, em definitivo, o uso de tal ou qual instrumento, de acordo com as circunstâncias. O Príncipe, portanto, deve ter acuidade e senso político (duas virtú essenciais para um bom governante) para discernir se ele deve continuar seguindo um ou outro princípio – sem que a isso seja atrelada qualquer consideração de ordem moral ou metafísica.
Ressalta-se, uma vez mais, que tal prática – embora eficaz (mas não é de eficácia que tratamos aqui) – reflete uma cosmovisão e pressupostos que não são cristãos e não se destinam a transformar a natureza e as estruturas humanas no sentido do Evangelho.
E-mail para Presb. Alain Paul: alain@correios.com.br.
Fonte: www.ipcg.org.br

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